BELO HORIZONTE CULTIVA A SOUL MUSIC
20/08/2014 21:04Um quarteirão dedicado à música soul no coração de BH
Depois de insistir bastante para a esposa sair do hotel e conhecer o centro da cidade, Max desistiu e resolveu caminhar sozinho. Era a primeira vez que percorria as ruas da capital mineira. Encantou-se com a diversidade de iguarias, artesanatos e os tira-gostos servidos nos botecos do Mercado Central. Pertinho dali, descobriu um prédio antigo onde havia milhares de exemplares de disco de vinil. Ficou impressionado. Nem sabia que existia um lugar que ainda preservava aquele tipo de mídia em pleno século XXI. Mas a surpresa maior que o passeio solitário lhe reservava estava a apenas alguns metros. De longe, avistou um aglomerado de pessoas no meio de uma rua. Som alto e figurões vestidos no mais fino estilo black music anos 70. O turista de Porto Alegre nem sabia, mas havia acabado de chegar ao Quarteirão do Soul.
A única coisa familiar para Max era o nome da rua: Santa Catarina, seu Estado vizinho, no sul do Brasil. O restante era extrema novidade para o visitante. No tapete, estendido no asfalto, os passos sofisticados dos dançarinos faziam um verdadeiro flashback dos bailes de quatro décadas atrás, quando o funk soul – eternizado pelo norte-americano James Brown – era sucesso absoluto no Brasil. Basta lembrar da coreografia usada pelo cantor e ator brasileiro Tony Tornado, com sua cabeleireira blackpower, para ter uma leve noção do estilo musical. E tudo acontecendo na rua. Quase inacreditável aos olhos do porto-alegrense que acompanhava de perto cada detalhe do show. “O que mais chama minha atenção é que as pessoas estão aqui para se divertir e dançar, sem segundas intenções. E mesmo sendo na rua, todos se respeitam e não há violência. Nunca tinha visto algo parecido”, comenta o comerciante que ficou o tempo todo ao lado da mesa de som, observando o movimento.
Quem comanda as batidas do embalo são os DJs Joseph e Geraldinho. O segundo foi o fundador da tradição soul, que é realizada todos os sábados, no centro da capital mineira, de 14h às 22h30. “E só acaba porque desligamos o som, se deixar o pessoal fica dançando a madrugada inteira”, brinca. Geraldo Antônio dos Santos é lavador de carro e costumava vender CDs na rua Goitacazes, também no centro de BH. Certo dia, em 2004, um cliente comprou um disco com canções de funk soul e pediu para testá-lo na Caravan do vendedor. O som no último grau contagiou a maioria das pessoas que passavam pela rua e seguiam os passos da dança protagonizada pelos dois. O sucesso foi tanto que resolveram repetir o embalo no sábado seguinte. Daí não parou mais e a diversão ganhou o nome de “Quarteirão do Soul”. Como a bateria do antigo chevrolet já não suportava mais a batida, o veículo foi trocado por caixas de som. Atualmente, tudo fica guardado num cômodo na região central para facilitar a montagem dos equipamentos. Som, mesa de mixagem e o tapete vermelho são organizados religiosamente toda semana. Se eles ganham alguma coisa por isso? Apenas o prazer de fazer renascer a black music dos anos 70 em pleno núcleo urbano contemporâneo.
A maioria dos dançarinos beira os 50 anos. É o caso de Seu Marcos, conhecido como Marquinho. Ele é considerado o mascote e também o motor que mantém o baile. “São horas de dança sem parar. Isso aqui é minha paixão e depois que começo, só saio do tapete depois que o som acaba”, revela o senhor, que durante a semana trabalha como segurança. Mas também há espaço para adolescentes e até crianças. O pequeno Igor, de apenas 9 anos, rouba cena ao mostrar o gingado que ele garante ter aprendido quando só tinha 5 anos. E as mulheres, claro, também balançam o esqueleto e levam seu charme para a pista.
É impossível passar pelo “Quarteirão do Soul” e não avistar, de longe, uma vasta cabeleira grisalha decorada com uma flor. Ela pertence à Dama do Soul, que em dias normais é a artesã Maristane Rodrigues. A dançarina esbanja sensualidade com um figurino impecável e maquiagem caprichada. O contato dela com o estilo black começou ainda na infância e agora passa os ideais do movimento para a filha de 9 anos. “Quero muito mais que fazer uma personagem, pretendo deixar minha marca e um legado para as próximas gerações. Isso aqui não pode parar se, no futuro, esse pessoal não estiver mais aqui”, argumenta.
E a Dama não está sozinha na lista dos apaixonados pelo estilo James Brown de se divertir. Seu Geraldo de Souza também dá um trato no visual quando o destino é o “Quarteirão do Soul”. A boina ajeitada na cabeça é mais um complemento do modelito, que conta com gravatinha borboleta, colete estampado, calça social e sapato bicolor. “Penso num modelo de sapato e explico para o sapateiro criar. A roupa é a mesma coisa, invento e peço pro alfaiate fazer. Quem gosta mesmo disso aqui respeita o figurino da época. É isso que dá vida ao baile”, defende o funileiro.
Entre a multidão que fecha a rua, a maioria é formada por curiosos e admiradores. Gente de diversos lugares do Brasil e do mundo já deram uma parada para conferir o agito black. “É comum aparecer estrangeiros aqui fotografando e fazendo filmagens. Pessoas dos Estados Unidos, Alemanha e até Israel já vieram aqui registrar o movimento e ficaram encantados”, afirma DJ Geraldinho.
O estudante Kleber Rocha ficou entusiasmado ao ver, pela primeira vez, a alegria das pessoas que frequentam o quarteirão. Ele é do interior mineiro e nunca viu nada parecido. Já o cabeleireiro Jader Alves sempre passa por aqui quando sai do salão aos sábados. “Eu admiro muito essa ideia, acredito que seja uma arte mesmo. Muito legal”, elogia.
Mesmo quem está ali só para observar não consegue manter os pés quietos e, aos poucos, o corpo vai respondendo aos estímulos provocados pelas batidas do funk soul. Nem que seja ali nos botecos que ficam perto. Uma experiência contagiante que só vivencia quem faz como Max, de Porto Alegre, escolhe Belo Horizonte para passear.
Onde fica
Rua Santa Catarina, entre a Av. Amazonas e Rua Tupis – Centro
Quando é realizado
Todos os sábados das 14h às 22h
Fonte: Materia editada pela Prefeitura de Belo Horizonte